BEIJA-FLOR ME CHAMOU

Meu marido saiu na varanda e, ao me ver em prantos, achou que o beija-flor tinha morrido. Mas não. Eu estava chorando porque ele tinha vivido e acabara de voar feliz para uma árvore bem alta. É tão tênue a linha que separa a morte da vida...Mas esta história não começa aqui, então eu vou contar desde o início, bem antes do beija-flor me chamar.

Comecei minha manhã participando de um encontro mensal de um grupo de aprendizagem coletiva que existe há muitos anos, e meu marido é um dos guardiões deste espaço. Reunimo-nos uma vez por mês e no último ano isso tem ocorrido virtualmente. O tema de hoje era o pensamento sistêmico, especialmente inspirado em um texto de Edgar Morin, no qual ele reflete com sabedoria e lucidez a complexidade sobre o atual momento que nós, enquanto humanidade estamos vivendo.

Resolvi nesta reunião apenas ouvir. Às vezes faço isso: entro com o microfone mutado e sinto toda a liberdade de ouvir cada visão sem ter que dizer o que acho. Minha capacidade de escuta se amplia muito quando faço isso. Enquanto ouvia, refletia: “Tudo se resume ao dinheiro. Toda a crise que estamos vivendo nasce dessa nossa economia do avesso, ensimesmada na sobrevivência, encantada pelas seduções. A corrida dos laboratórios pelas vacinas mais potentes, os governos lutando para salvarem seus países ou posições, os impedimentos de lockdown para que a economia não pare, ou mesmo a fome no mundo, que sempre existiu e com a pandemia só piorou, se resume a isso: um sistema doente, tóxico, suicida e cego move todas as montanhas da existência humana. Se fosse o amor a mover essas mesmas montanhas, estaríamos em outro lugar. Mas... falar de amor é romântico demais para estes tempos de tanta dor. Porque afinal, não queremos muito pensar sobre a causa desta dor. Queremos mesmo é tomar uma vacina que resolva de vez todo esse sofrimento – o nosso sofrimento, não o do mundo - e assim seguimos. Será?”

Pensei muito nos ensinamentos de Charles Eisenstein sobre o Gift Economy e novamente me senti amparada por sua visão de mundo, uma pequena luz no final de um túnel longo que parece não ter fim. Tudo isso ocorreu dentro de mim, silêncio por fora, enquanto eu borbulhava por dentro. Ouvia com atenção cada pessoa que trazia suas reflexões em recortes caleidoscópicos, tentando compreender uma realidade incompreensível de tão complexa.

Quando terminou, fui tomar meu café vegano, com patês e pães orgânicos que comprei no Instituto Chão, um lugar em São Paulo que move uma economia diferente. Esse pequeno detalhe tem muito mais a ver com o que escrevi acima do que possa parecer. Mas vamos mais adiante.

Meu marido chegou e começamos a conversar sobre como foi o encontro da manhã. Compartilhei com ele algumas das minhas reflexões: a minha necessidade de buscar o essencial diante da complexidade. E para mim – eu falei para ele – o essencial é a conexão com a vida. Tudo isso está acontecendo porque nos desconectamos da vida, da natureza, do amor, da compaixão e da gratidão. Se todos estivessem conectados com isso, não estaríamos onde estamos hoje. O essencial é a fagulha de vida que pulsa em mim, nos que amo, nos que desconheço, nos que me causam raiva, nas árvores, nas plantas e nos animais.

A desconexão com a vida no sentido amplo e profundo nos levou ao lugar que estamos hoje. Contamos mentiras para nós mesmos, para aguentar viver em um mundo onde a crueldade, a injustiça, a escravidão, a fome, a miséria e tantos outros horrores nos circundam.

Compactuamos direta ou indiretamente com isso, porque fazemos parte de um sistema que foi montado por nós, e não sabemos mais o que fazer para desmontar. A criatura tornou-se maior e mais poderosa do que o criador.

A pandemia nos colocou diante de nossos maiores medos: a morte, a impotência e a incerteza. Novamente, diante de tanta complexidade, eu procuro o essencial: a conexão com a vida.

Na conversa com meu marido, segui adiante falando o quanto as Danças Circulares me ajudavam a conectar com o essencial. E como eu sinto falta disso! Ao falar, comecei a chorar. Lembrei das inúmeras vezes nas quais me senti conectada com a vida em um círculo sagrado de Dança Circular. E, quantas vezes, como focalizadora, eu pude criar contextos para que as pessoas sentissem também esta conexão que nasce da presença. Tão profundamente curador e reparador! Quanta esperança e possibilidade de ação nasce nestes círculos!

São muitas as perdas que estamos vivendo e sentindo. Elas extrapolam os muros da nossa casa, ultrapassam os impedimentos do nosso cotidiano, furam as bolhas das fronteiras entre nações e reinos. Estamos todos perdendo muito e talvez a principal perda, além das vidas, seja a esperança. Não podemos deixar que isso aconteça.

Diante de toda a complexidade, novamente, busco um refúgio no essencial: a conexão com a vida. Como acessar esse lugar que faz meu coração pulsar no ritmo do amor, mesmo sem poder entrar em uma roda de Dança Circular? Como acessar este lugar com tantas perdas, dores, raivas, medos, proibições e indignações?

Meu marido me olhou, com toda a ternura que seus olhos verdes têm me oferecido ao longo dos últimos 30 anos e me disse: “Vou te falar uma coisa muito importante agora. Não faça absolutamente nada além de se trancar no quarto e escrever. Você acessou algo muito profundo e a minha sugestão é que você escreva tudo isso que conversamos. Não deixe que nada te distraia. Faça isso agora, por favor.”

Aceitei o convite. Deixei panelas para lavar, casa para arrumar, mensagens para responder e fui para o computador escrever. Escrevi um parágrafo e minha gata entrou no quarto e se enfiou embaixo da cama. Não liguei. Começou a fazer um barulho, meu marido entrou no quarto e disse que ela estava brincando com uma borboleta. Continuei escrevendo. Pouco depois, ouvi um piado. Levantei correndo e vi que ela estava brincando com um filhotinho de beija-flor. Gritei, ela se assustou e entrou embaixo da cama. Peguei o filhotinho do chão, vi que estava vivo, coloquei em minha mão e fui ao terraço.

Sentei na cadeira e lá fiquei com ele. Muito tempo. Muito tempo. Muito tempo. Conversando, olhando, chorando, cantando e dizendo que ele ficaria bem. Vez ou outra fazia um carinho bem suave em suas penas, enquanto ele repousava deitado na minha mão em concha. Procurei transmitir vida com minhas mãos, para o seu coraçãozinho assustado. Meu marido trouxe água e dei algumas gotas, mas ele não abria o biquinho. Seus olhos estavam abertos, mas a cabecinha deitada. Eu podia ver alguns tons de verde cintilante em suas penas, mas a maioria era da cor cinza. Enquanto eu dizia que ele ficaria bem, buscando em minha voz a maior suavidade possível, pensava que talvez ele morresse. E se assim fosse, diante da minha impotência, eu estava fazendo o que podia: oferecendo meu amor e cuidado com presença plena. Era o máximo que eu podia fazer por ele naquele momento. Pedi desculpas pela minha gata. Gatos gostam de caçar e brincar e esta lei natural sistêmica também faz parte do essencial de conexão com a vida.

Foi um tempo fora do tempo, não sei quantos números o relógio marcou. Depois de muitas tentativas, vi seu pescocinho se movimentar mais e o bico fez uma breve abertura para que a fina língua absorvesse uma gota de água. Depois mais uma. A cabeça deu uma leve levantada e eu fui sentindo em minha mão a vitalidade do seu corpo pulsar de outro jeito. Vi e senti sua vida voltando ao corpo. Quando ele levantou um pouco mais o pescoço, aí sim, eu enxerguei: a cor das penas era de um roxo cintilante, vivo, brilhante, que eu jamais vou conseguir explicar com palavras. Vi tanta vida naquele serzinho, tanta esperança e beleza, que eu só chorava e agradecia, enquanto olhava seus olhos fitados aos meus. Em poucos instantes, ele voou. E enquanto eu chorava, meu marido chegou na varanda.

Em tempos de tanta complexidade, que eu nunca me esqueça do essencial. Simplesmente, a conexão com a vida. Ainda bem que o beija-flor me chamou. 

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